Se o riso é uma linguagem universal, o humor, por sua vez, é praticamente um fenômeno isolado. Peter Burke, professor de História da Cultura na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, afirma que as piadas se perdem na tradução não apenas de um idioma para outro, mas também entre diferentes períodos e culturas. Daí a existência de um lugar para a história do riso.
'O estudo do humor é sempre o estudo de uma sociedade que adotou o cômico como código para interpretar o real e usa o humor como forma de falar de sua história', diz a historiadora Maria Inês Gurjão, professora do Departamento de Comunicação da PUC-Rio. 'Seus problemas, carências e sofrimentos são invertidos, passando do plano do trágico e do drama, que causam o choro, para o plano do cômico e do humor, que levam ao riso.'
Esse processo, defende Gurjão, é indispensável para o bem-estar de um povo. 'Enquanto as pessoas conseguem rir, as contradições estão sob controle e os conflitos não constituem ameaça iminente. Seu desaparecimento é sinal de perigo; neste caso, o riso deve ser provocado por agentes externos', explica. É quando surgem os comediantes, que ao longo da história tiveram muitas caras. 'Saltimbancos, palhaços e humoristas em geral costumam ter suas atividades estimuladas pelos próprios agentes sociais. Chegaram, até mesmo, a exercer papéis e funções ligados ao governo, como é o caso específico do bufão, nas cortes. Mas, apesar de terem sua atuação consentida, eram controlados pelo poder político e pelas demais instituições do grupo ao qual pertenciam.'
Não é à toa que, nos últimos cem anos, com o arrefecimento da censura, o humor e a crítica política venham mantendo uma relação tão estreita. Afinal, o território do poder é o que mais se expõe no espaço público, e constitui uma origem óbvia para o descontentamento popular. Mas nem sempre foi assim, aponta Elias Thomé Saliba, professor de Teoria da História na USP (Universidade de São Paulo) e autor de 'Raízes do Riso'. 'Quando não existia propriamente um espaço público - na história ocidental, grosso modo, antes da Revolução Francesa -, o humor incidia muito mais sobre a crítica dos costumes e dos comportamentos.'
Reis do riso
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Os maiores comediantes da história do cinema, segundo o crítico Inácio Araújo
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Buster Keaton
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Irmãos Marx
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Jacques Tati
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Charles Chaplin
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Jerry Lewis
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Harold Lloyd
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Riso do bem
E, também, a crítica não foi sempre a tônica do humor. Se pensarmos na comédia, a função era a do riso compartilhado - 'uma festa, ou banquete, na acepção platônica', lembra Saliba. A comédia, originalmente nascida de um culto agrário a Dionísio, deus do vinho e da embriaguez, mas também da comunhão e da solidariedade, envolvia todos num ritual de dança, festa, máscaras e fantasias de deboche.
Na Idade Média, a cultura cômica esteve profundamente ligada às festas populares, já que o riso tinha sido expurgado do culto religioso, do cerimonial feudal, da etiqueta aristocrática e de todas as formas da cultura oficial. 'Era uma comicidade radical, livre, materialista, beirando o grotesco, cujo tema universal era, em grande medida, o drama da vida corpórea', diz o historiador. Eventos e necessidades naturais como sexo, nascimento e alimentação eram expressados nas 'festas de loucos', no 'dia dos tolos', no carnaval e nas bufonarias. 'O riso adquiria, assim, uma significação essencialmente positiva, regeneradora, criadora - ligada ao ciclo do tempo, à alternância das colheitas e das estações do ano, aos fluxos da vida e da morte', explica.
A separação entre esse tipo de humor e o que conhecemos hoje acontece com a mudança de valores da modernidade. Em tempos antigos, as sociedades possuíam uma noção clara de dois tipos ou práticas do riso: o bom, expressão da alegria lícita, e o mau, expressão do 'rir de alguém' ou 'rir contra alguém'. As sociedades do mundo ocidental cristão, em especial, distinguiam-nos como produto do céu e da terra, respectivamente, marcando a imperfeição dos homens. Quando, a partir do século 18, a razão humana começa a substituir as leis celestes, o riso e o humor saem do mundo divino e ganham até uma tinta satânica. |
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